Audiência de custódia!
As prisões cautelares têm grande relevância em nosso ordenamento jurídico. Se por um lado são usadas para garantir a efetividade do processo penal, mantendo encarcerados supostos autores de crimes que devido às circunstâncias podem vir a atrapalhar o regular desenvolvimento do processo. Por outro, podem causar privações de liberdade desnecessárias aos indivíduos, que segundo o princípio da presunção de inocência, só serão considerados culpados, após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Com a finalidade de aplicar medidas menos gravosas, até que se tenha uma decisão definitiva sobre o culpado pelo cometimento de um crime, o Código de Processo Penal Brasileiro prevê, no artigo 319, medidas cautelares diversas da prisão, como formas para a consecução dos mesmos fins.
Acontece que o instituto da prisão cautelar tem sido usado de forma excessiva, violando, em algumas situações, direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. Em alguns casos, os presos provisórios só terão a oportunidade de se defender, efetivamente, quando da audiência de instrução.
Nesse panorama, foi instituída no Brasil, no início de 2015, a chamada audiência de custódia, a qual visa a apresentação do preso em flagrante à autoridade judiciária, em até 24 horas da comunicação da prisão, para que sejam analisados aspectos de legalidade, bem como ocorrência de tortura e maus tratos. Nessa audiência, o juiz pode relaxar a prisão que entender ilegal, conceder liberdade provisória, impor medidas cautelares diversas da prisão ou mantê-la, caso presentes os requisitos previstos em lei.
Por inovar o processo penal, o tema ganha grande relevância, pois amplia sobremaneira a celeridade sobre a avaliação da prisão em flagrante pela autoridade judiciária, com a participação do preso, seu defensor e do membro do Ministério Público.
Acontece que com a implantação das audiências de custódia surgiram polêmicas sobre as quais é possível citar opiniões de peso contra e a favor. Para seus defensores, a exemplo de Renato Brasileiro de Lima, Caio Paiva, Mauro Fonseca Andrade, Plablo Rodrigo Alflen e Raphael Melo, a audiência de custódia traz como benefícios a diminuição dos encarceramentos desnecessários, diminuição da superlotação nos presídios, economia nos gastos públicos e uma maior garantia da integridade física dos presos. Para seus opositores, a exemplo da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais - ANAMAGES, Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL Brasil e o jurista Guilherme de Souza Nucci, a audiência de custódia sobrecarrega ainda mais a estrutura judiciária do país, criando a obrigação de disponibilização de recursos humanos e materiais que já são escassos. Além disso, defendem que o procedimento previsto no parágrafo 1º do artigo 306 do Código de Processo Penal (remessa dos autos da prisão em flagrante em 24 horas para o juiz e a defensoria) já seria suficiente para que o magistrado tomasse conhecimento da prisão e determinasse as providências necessárias. Alegam, ainda, que a audiência de custódia só poderia ter sido instituída por alterações no CPP, por meio de aprovação no parlamento.
Tendo em vista as controvérsias, este artigo busca analisar a eficiência e efetividade da audiência de custódia no Processo Penal Brasileiro, demonstrando, por meio de investigação bibliográfica, pesquisa doutrinária e análise jurisprudencial, seus resultados nesses mais de dois anos de existência.
Dessa maneira, num primeiro momento, será conceituada a audiência de custódia e detalhados seus procedimentos, assim como será feita uma análise sobre os princípios informadores das prisões e demais medidas cautelares.
Posteriormente, será exposta a fundamentação jurídica para a implantação da audiência de custódia, com análise dos dispositivos constitucionais, tratados internacionais e da ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5240.
Por fim, serão analisadas posições contrárias e a favor do instituto.
1 – Conceito de audiência de custódia:
A audiência de custódia pode ser conceituada como o procedimento de avaliação pela autoridade judiciária competente sobre a legalidade da prisão em flagrante, sob vários aspectos. Nessa avaliação são observadas a legalidade, necessidade e adequação da medida, bem como as circunstâncias que a ocasionaram. Não se revelando adequado o encarceramento, torna-se possível a aplicação de medidas cautelares, diversas da prisão, que assegurem o comparecimento do conduzido ao longo da persecução penal, ou mesmo que seja concedida liberdade provisória, sem prejuízo da presença de um defensor para acompanhar o ato. Algumas das principais finalidades da audiência de custódia são reveladas, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima:
[...] não apenas à averiguação da legalidade da prisão em flagrante para fins de possível relaxamento, coibindo, assim, eventuais excessos tão comuns no Brasil como torturas e/ou maus tratos, mas também o de conferir ao juiz uma ferramenta mais eficaz para aferir a necessidade da decretação da prisão preventiva (ou temporária) ou a imposição isolada ou cumulativa das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, art. 310, I, II e III), sem prejuízo de possível substituição da prisão preventiva pela domiciliar, se acaso presentes os pressupostos do art. 318 do CPP (LIMA, 2015, p.927).
Na visão de José Carlos Ferreira a audiência de custódia pode ser conceituada como:
Trata-se do direito do indivíduo preso, autuado em flagrante delito, de ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade judiciária para que esta, na ocasião, tome conhecimento de possíveis atos de maus tratos ou de tortura e, ainda, para que se promova um espaço de dialética entre as partes acerca da legalidade ou ilegalidade da prisão cautelar.
Assim, deverá ocorrer a apresentação do preso em flagrante à presença do juiz (o juiz plantonista que atualmente atua na homologação do auto de prisão em flagrante) no prazo de até 24 horas, isso para garantir que eventual prisão arbitrária e ilegal seja relaxada nos moldes que assegura a Constituição da República Federativa do Brasil.
Na audiência em tela, deverão participar o representante do Ministério Público e o advogado de defesa, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa[1].
Segundo Caio Paiva, o conceito e a finalidade da audiência de custódia são:
O conceito de custódia se relaciona com o ato de guardar, de proteger. A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial, que deverá, a partir de prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal[2].
1.1 – Procedimentos previstos na Resolução 213/2015 do CNJ:
O artigo primeiro da mencionada Resolução assim dispõe:
Art. 1º Determinar que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.
§ 1º A comunicação da prisão em flagrante à autoridade judicial, que se dará por meio do encaminhamento do auto de prisão em flagrante, de acordo com as rotinas previstas em cada Estado da Federação, não supre a apresentação pessoal determinada no caput.
Do texto acima transcrito é possível concluir que a apresentação do preso em flagrante deverá ocorrer em até vinte e quatro horas da comunicação da prisão à autoridade judicial e que o fato de haver esta comunicação, como determinado pelo § 1º do artigo 306 do CPP, não supre a apresentação do preso. É interessante ressaltar que o artigo 13, da mesma resolução, também estende às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, o direito a essa apresentação, aplicando-se, no que couber, os procedimentos nela previstos.
Além disso, dispõe o artigo 3º que: se por qualquer motivo, não houver juiz na comarca até o final do prazo do art. 1º, a pessoa presa será levada imediatamente ao substituto legal, observado, no que couber, o § 5º do art. 1º.
Tal previsão tem razão de existir, pois em algumas comarcas não há juiz ou as condições não permitem que esta autoridade participe da audiência no período estipulado (até 24 horas da comunicação da prisão).
O artigo 4º determina que haja assistência de um defensor público caso não tenha sido constituído advogado para o preso no momento da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante.
Art. 4º A audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante.
Parágrafo único. É vedada a presença dos agentes policiais responsáveis pela prisão ou pela investigação durante a audiência de custódia.
A medida prevista no parágrafo único justifica-se para dar efetividade a um dos principais objetivos da audiência, qual seja: descobrir se a pessoa presa foi submetida a tortura ou maus tratos por parte de quem a prendeu ou nos locais onde esteve presa por ocasião de sua captura. Logo, não seria razoável esperar que alguém submetido a tortura ou maus tratos, admita que o foi na presença de seus agressores.
No art 7º existe a previsão do Sistema de Audiência de Custódia – SISTAC, disponibilizado pelo CNJ, gratuitamente, para todas as unidades judiciais responsáveis pela realização das audiências para facilitar a coleta de dados nelas produzidos. O SISTAC tem entre suas finalidades:
I - registrar formalmente o fluxo das audiências de custódia nos tribunais;
II - sistematizar os dados coletados durante a audiência de custódia, de forma a viabilizar o controle das informações produzidas, relativas às prisões em flagrante, às decisões judiciais e ao ingresso no sistema prisional;
III - produzir estatísticas sobre o número de pessoas presas em flagrante delito, de pessoas a quem foi concedida liberdade provisória, de medidas cautelares aplicadas com a indicação da respectiva modalidade, de denúncias relativas a tortura e maus tratos, entre outras;
IV - elaborar ata padronizada da audiência de custódia;
V - facilitar a consulta a assentamentos anteriores, com o objetivo de permitir a atualização do perfil das pessoas presas em flagrante delito a qualquer momento e a vinculação do cadastro de seus dados pessoais a novos atos processuais;
VI - permitir o registro de denúncias de torturas e maus tratos, para posterior encaminhamento para investigação;
VII - manter o registro dos encaminhamentos sociais, de caráter voluntário, recomendados pelo juiz ou indicados pela equipe técnica, bem como os de exame de corpo de delito, solicitados pelo juiz;
VIII - analisar os efeitos, impactos e resultados da implementação da audiência de custódia.
O artigo 8º traça um roteiro dos procedimentos a serem seguidos na audiência de custódia como podemos observar abaixo:
Art. 8º Na audiência de custódia, a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo:
I - esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial;
II - assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito;
III - dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio;
IV - questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares;
V - indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão;
VI - perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis;
VII - verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que:
a) não tiver sido realizado;
b) os registros se mostrarem insuficientes;
c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado;
d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial, observando-se a Recomendação CNJ 49/2014 quanto à formulação de quesitos ao perito;
VIII - abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante;
IX - adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades;
X - averiguar, por perguntas e visualmente, hipóteses de gravidez, existência de filhos ou dependentes sob cuidados da pessoa presa em flagrante delito, histórico de doença grave, incluídos os transtornos mentais e a dependência química, para analisar o cabimento de encaminhamento assistencial e da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar.
§ 1º Após a oitiva da pessoa presa em flagrante delito, o juiz deferirá ao Ministério Público e à defesa técnica, nesta ordem, reperguntas compatíveis com a natureza do ato, devendo indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação, permitindo-lhes, em seguida, requerer:
I - o relaxamento da prisão em flagrante;
II - a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão;
III - a decretação de prisão preventiva;
IV - a adoção de outras medidas necessárias à preservação de direitos da pessoa presa.
§ 2º A oitiva da pessoa presa será registrada, preferencialmente, em mídia, dispensando-se a formalização de termo de manifestação da pessoa presa ou do conteúdo das postulações das partes, e ficará arquivada na unidade responsável pela audiência de custódia.
§ 3º A ata da audiência conterá, apenas e resumidamente, a deliberação fundamentada do magistrado quanto à legalidade e manutenção da prisão, cabimento de liberdade provisória sem ou com a imposição de medidas cautelares diversas da prisão, considerando-se o pedido de cada parte, como também as providências tomadas, em caso da constatação de indícios de tortura e maus tratos.
§ 4º Concluída a audiência de custódia, cópia da sua ata será entregue à pessoa presa em flagrante delito, ao Defensor e ao Ministério Público, tomando-se a ciência de todos, e apenas o auto de prisão em flagrante, com antecedentes e cópia da ata, seguirá para livre distribuição.
§ 5º Proferida a decisão que resultar no relaxamento da prisão em flagrante, na concessão da liberdade provisória sem ou com a imposição de medida cautelar alternativa à prisão, ou quando determinado o imediato arquivamento do inquérito, a pessoa presa em flagrante delito será prontamente colocada em liberdade, mediante a expedição de alvará de soltura, e será informada sobre seus direitos e obrigações, salvo se por outro motivo tenha que continuar presa.
Sobre a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, dispõe o artigo 9º:
Art. 9º A aplicação de medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP deverá compreender a avaliação da real adequação e necessidade das medidas, com estipulação de prazos para seu cumprimento e para a reavaliação de sua manutenção, observando-se o Protocolo I desta Resolução.
Seguem abaixo as medidas cautelares previstas no CPP:
Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
O art 11 da resolução trata das providências a serem adotadas diante da declaração do preso de que foi submetido a tortura ou maus tratos, ou constatação pela autoridade judiciária de tal condição.
Art. 11. Havendo declaração da pessoa presa em flagrante delito de que foi vítima de tortura e maus tratos ou entendimento da autoridade judicial de que há indícios da prática de tortura, será determinado o registro das informações, adotadas as providências cabíveis para a investigação da denúncia e preservação da segurança física e psicológica da vítima, que será encaminhada para atendimento médico e psicossocial especializado.
Como é possível perceber, existem várias questões a serem observadas pela polícia e pelos operadores do direito a fim de resguardar os direitos do preso, restando como última hipótese a manutenção da prisão. Esse sistema, em que pese precisar de aperfeiçoamentos, garante, em tese, que a prisão seja a ultima ratio. Logo, visa dar guarida ao princípio da presunção de inocência.
Sendo assim, é preciso conhecer a fundamentação para aplicação de medidas cautelares.
1.2 – Aplicação de medidas cautelares.
O processo penal brasileiro prevê, como regra, a liberdade. Porém, em algumas situações, visando à efetividade da persecução penal, podem ocorrer prisões (preventiva ou provisória) antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essas prisões são classificadas como cautelares, provisórias ou processuais. Apesar das várias classificações, a doutrina prefere a expressão prisão cautelar por transmitir claramente a natureza jurídica que qualquer privação da liberdade de ir e vir deve apresentar antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Segundo Raphael Melo, por ser um instituto que gera tensão entre o interesse cautelar e punitivo do Estado e as garantias individuais do imputado, a prisão antes ou durante o processo sempre suscitou controvérsias, conforme leciona Aury Lopes Júnior:
[...] neste tema existe um árido objetivo que é o equilíbrio entre as medidas coercitivas utilizadas pelo Estado, para eficácia da repressão ao delito e os direitos e garantias individuais assegurados na Constituição. As medidas cautelares coercitivas são produto da tensão entre dois deveres próprios do Estado Democrático de Direito – de um lado, a proteção de conjunto social e a manutenção da segurança coletiva dos membros da comunidade frente à desordem provocada pelo injusto típico, através de uma eficaz persecução dos delitos , e, de outro lado, a garantia e a proteção efetiva das liberdades e direitos fundamentais dos indivíduos que a integram (MELO apud Lopes JR.,2016, p.54-55)
Nesse sentido, criou-se um sistema de “proteção” da liberdade em detrimento das prisões, onde podemos observar: a liberdade como regra, excepcionalidade das medidas cautelares e a prevalência das cautelares diversas sobre a prisão cautelar.
Na lição de Raphael Melo:
O imputado, antes do trânsito em julgado da condenação, é inocente, o que permite afirmar o caráter cautelar das medidas pessoais impostas antes da formação da coisa julgada. Essas providências não são satisfativas e só podem ser manejadas diante da necessidade para a aplicação da lei penal, investigação ou instrução criminal e para evitar a reiteração criminosa. Assim, a regra é a restituição da liberdade plena, no caso de prisão em flagrante, ou sua manutenção sem restrições nas demais situações, sendo o uso das medidas cautelares diversas e, principalmente, da prisão cautelar, excepcional, como previsto no art. 5º, caput LIV, LXI, LXV, LXVI, LXVIII da Constituição, art 9º do PIDCP, art 7º, 1 e 2 da CADH, 283 e 321 do CPP, entre outros.
Contudo, existindo necessidade acautelatória, a liberdade poderá ser restringida, com a imposição de medidas cautelares diversas, que têm caráter prevalente sobre a prisão cautelar, já que esta é a mais gravosa dentre as alternativas disponíveis. Esse caráter prevalente da cautelar diversa é claramente acolhido pela lei. O CPP, reformulado pela Lei 12.403/2011, passou a prever, no art. 282, § 4º que “[...] no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento, do Ministério Público, de seu assistente ou querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva” (art.312, parágrafo único). (MELO, Raphael, 2016, p. 51-52).
Diante desse cenário, a regulamentação expressa pelo art 9º da Resolução 213/2015 do CNJ parece estar em consonância com o que prevê o CPP:
Art. 9º A aplicação de medidas cautelares diversas da prisão previstas no art. 319 do CPP deverá compreender a avaliação da real adequação e necessidade das medidas, com estipulação de prazos para seu cumprimento e para a reavaliação de sua manutenção, observando-se o Protocolo I desta Resolução.
Todas essas ideias de prevalência da liberdade sobre a prisão decorrem de uma rede de princípios processuais penais que lhes dão sustentação, mas antes de analisá-los, precisamos conhecer os aspectos que levaram à edição da Lei 12.403/2011, a qual promoveu várias alterações no CPP.
1.2.1 - A Lei nº 12.403/2011.
Conforme leciona Arnaldo Quirino de Almeida:
Inicialmente, é de se destacar que, com a edição da Lei n° 12.403/2011 surgiram críticas no sentindo de que as alterações produzidas no Código de Processo Penal teriam como consequência imediata o aumento da impunidade e dos índices de criminalidade. Com o devido respeito da opinião de todos aqueles que são adeptos do radicalismo da repressão a todo custo e da supressão de garantias constitucionais conquistadas ao longo de décadas de lutas contra o arbítrio e abusos praticados contra o cidadão, ou que imaginam que somente o Direito ou leis penais e processuais penais rigorosas são capazes de reduzir o quadro dos altos índices de criminalidade no País, no atual momento histórico já não podemos mais pensar dessa forma.
Primeiro, porque é sabido que o Direito reflete a realidade e absorve as experiências de uma determinada sociedade, todavia, somente atuando por meio do legislador em momento posterior às anomalias sociais e dificilmente se manifesta antecipando-se aos movimentos sociais através da criação de leis ou atualização do aparato legal de modo preventivo. A função de pacificação social do Direito e do Direito Penal, nesse contexto, muitas vezes é deficiente. Segundo, porque precisamos parar de acreditar que o Direito e as leis que compõem o seu arcabouço é o único mecanismo capaz de solucionar todos os males da sociedade em todas as áreas da atividade humana.
Conflitos sociais e criminalidade existem e sempre existirão, ainda que em dada época em níveis intoleráveis, por óbvio. Sua maior ou menor gravidade, maior ou menor incidência, nos parece que está relacionado diretamente com aspectos históricos, culturais, sociológicos, econômicos, como por exemplo: excesso de concentração de renda, exclusão social, nível sócio-educacional sofrível, etc., agravados no seio de uma sociedade globalizada e altamente tecnológica em que os valores da vida humana vão se dissipando em meio, dentre outras coisas, ao apego excessivo ao consumismo e aos padrões decorrentes desse modo de vida.
O Direito, por si só, ou a edição de leis penais mais rígidas com o abandono de conquistas históricas não é o que nos livrará da constante insegurança de vivermos sob a égide de alguma impunidade ou do suposto aumento da criminalidade. Tais anomalias, por certo, dependem da atuação sempre conjunta e constante de todas as esferas da administração pública e da sociedade organizada e, claro, inclusive do Direito, com seus instrumentos apaziguadores de conflitos sociais. A Lei n° 12.403/2011 não pode ser analisada do ponto de vista de saber se irá contribuir ou não para o aumento da impunidade ou, por outra via, no aumento da criminalidade.
A questão não é esta como já afirmamos. Precisamos mudar de foco. Se simplesmente recrudescer a legislação penal resolvesse o problema da criminalidade, então nas localidades dos EUA onde se permite a pena de morte não haveria crimes ou estes seriam de ocorrência insignificante. A referida lei que alterou o sistema de medidas de cautela e da prisão preventiva, na verdade, foi editada após longos anos de debate e discussão, a fim tornar o Código de Processo Penal mais consentâneo com o texto constitucional nessa matéria e está de acordo com modernas legislações processuais penais, de que são exemplos as leis da Itália, Alemanha, Portugal, Espanha, dentre outros, cujo Direito é de mesma tradição que o nosso.
No atual estágio do Processo Penal, não se admite mais o encarceramento antes de decisão com trânsito em julgado sem que seja demonstrada “em concreto” e de modo “fundamentado” a efetiva necessidade da prisão preventiva e mesmo outras medidas restritivas da liberdade de locomoção devem atender ao binômio “necessidade-proporcionalidade”. Não podemos sair por ai encarcerando todos aqueles que cometeram delitos ao único pretexto de que, desde logo, já são “merecedores de pena” sem que seja observado o devido processo legal.
A demora para a finalização em definitivo da persecução penal com o consequente trânsito em julgado da condenação não pode servir de pretexto para a execução antecipada de pena, ainda mais quando sabemos, que não raro, temos casos de condenações injustas ou, quando não, de aplicação de excesso de pena, que invariavelmente somente são revistos no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal.
Se o que almejamos é celeridade, justa punição e cumprimento efetivo da reprimenda penal, então precisamos continuar trabalhando, todos os operadores do Direito, para que o processo penal tenha o seu término no menor prazo possível ou que tenha duração razoável como determina a Constituição Federal.[3]
1.2.2 - Princípios aplicáveis às medidas cautelares: noções gerais.
Todo arcabouço jurídico se sustenta em princípios que o regem, portanto precisamos conhecer quais são os principais pilares de implantação das medidas cautelares no processo penal brasileiro. Para isso, mais uma vez nos valemos das lições de Arnaldo Quirino de Almeida:
Com o advento da Lei n° 12.403/2011, que alterou dispositivos do Código de Processo Penal, a sistemática aplicável às medidas de cautela de natureza pessoal no processo penal agora está conformada ao texto constitucional, além do que, seus princípios informadores encontram-se expressamente consagrados na norma processual. É salutar a técnica legislativa de inserir no conteúdo normativo positivado princípios orientadores da matéria que se pretende regular.
Não é incomum que, no confronto ou interpretação e aplicação dos vários dispositivos e comandos da norma, aparentemente conflitantes ou contraditórios, se apresente uma solução que se mostre incongruente ou carente de sólido fundamento, passível de ser constantemente rediscutida em todas as instâncias recursais possíveis, trazendo instabilidade enquanto não dirimida definitivamente a controvérsia estabelecida acerca da melhor interpretação da lei. Em se tratando do direito à liberdade de locomoção não é salutar que se prolongue indefinidamente dúvida sobre ser pertinente, necessária, ou não, a manutenção ou decretação da custódia cautelar.
Quem acompanha a dinâmica das decisões de nossos tribunais em matéria de prisão cautelar e liberdade provisória, por exemplo, sabe da dificuldade até então existente para encontrar o justo equilíbrio entre manter a liberdade do acusado ou réu ou decretar-lhe a prisão preventiva, principalmente em razão de três fatores:
a) a perda de importância ou eficácia no nosso sistema processual do instituto da fiança (leia-se, artigo 310, parágrafo único, CPP);
b) ausência de um rol de medidas de cautela qualitativamente e quantitativamente em número que permitisse ao juiz, num juízo de ponderação de valores e em consonância com o caso concreto, determinar uma restrição pessoal diversa da prisão preventiva ou uma medida de meio termo entre a liberdade sem qualquer ônus e a prisão provisória;
c) a dificuldade em se decretar uma medida de cautela não prevista expressamente no Código de Processo Penal em razão do impedimento decorrente do princípio da legalidade também em matéria de restrição à liberdade de locomoção como tutela cautelar, como desdobramento lógico do princípio da reserva legal a demandar que em se tratando medida cautelar também deve ser observado o cânone da tipicidade fechada em matéria de medidas de cautela, a inviabilizar, inclusive, fossem invocados para tanto os princípios da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, até mesmo tendo em consideração que no processo penal o que se tem é um poder de cautela “regrado” e não um poder “geral” de cautela nos moldes que a teoria geral do processo reconhece para o processo civil.
A consequência era que, em grande numero de casos, havendo dúvida razoável e algum fundamento no contexto da prova dos autos, ou era mantida uma prisão provisória ou então decretada a prisão preventiva e após meses depois de experimentar os dissabores de uma prisão cautelar e os malefícios do nosso sistema prisional, após passar pelos percalços de decisões desfavoráveis das várias instâncias recursais, somente no Superior Tribunal de Justiça ou no Excelso Pretório é que era admitida a desproporcionalidade ou ausência de fundamento razoável para a decretação de medida de cautela, com o reconhecimento de que a restrição (precária) à liberdade de locomoção, no caso concreto era despicienda.
Agora, com o alargamento do rol de medidas de cautela introduzidas pela Lei n° 12.403/2011 é de se esperar que haja menos decisões equivocadas ou que sejam diminuídos os casos de prisões cautelares imotivadas, ilegais ou desproporcionais. Com a colocação à disposição do magistrado de várias outras medidas de cautela diversas da prisão preventiva assevera o legislador, sobretudo, a ideia de que, atento aos cânones constitucionais, nomeadamente o princípio da presunção de não culpabilidade e o direito ao esgotamento das vias recursais ordinárias e extraordinárias, a decretação da prisão no curso da persecução penal se exige tão somente desde que demonstrado a sua absoluta necessidade e atendido aos pressupostos legais que lhe são inerentes, também evidenciado que não cumpre sua função cautelar quaisquer das outras soluções apresentadas na nova lei de reforma.
Ainda sob a análise do referido autor, passemos a tomar nota dos principais princípios que embasam a aplicação das medidas cautelares:
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