A descrição da conduta do denunciado: elemento indispensável em toda e qualquer imputação

INTRODUÇÃO: DENÚNCIA - CONCEITOS E DEFINIÇÕES.

Verificando a existência de fato que, em tese, caracteriza crime e indícios de autoria, após análise da investigação e, ao final, do Relatório elaborado pela Autoridade Policial, o órgão acusador – Ministério Público - forma sua convicção (opinio delicti), iniciando a ação penal pública com o oferecimento da peça inicial, nomeada pelo artigo 24 do Código de Processo Penal como denúncia.
Segundo Fernando Capez, “a denúncia é a peça acusatória inaugural da ação penal pública (condicionada ou incondicionada) (CPP, art. 24); a queixa, peça acusatória inicial da ação penal privada.”
Fernando da Costa Tourinho Filho ensina que o início da ação penal não é sinônimo de ajuizamento. “Aquele se dá com o oferecimento da peça acusatória [...] Já o ajuizamento se dá quando o Juiz profere despacho determinando a citação” ou seja, após o recebimento da denúncia.” Desta maneira, conclui o renomado autor que “com o recebimento da denúncia, estava o pedido ajuizado; com a oferta da denúncia, estada a ação iniciada...”
Respeitando-se a Lei 11.719, de 20 de junho de 2008, primeiramente deve o magistrado analisar se existem algumas das situações ensejadoras de rejeição liminar. Caso a denúncia esteja formalmente em ordem, depois de verificados todos os pressupostos processuais, as condições da ação e a justa causa, ocorre a citação do réu para apresentar sua defesa inicial por escrito.
A palavra denúncia, em seu sentido etimológico, significa a “peça inauguratória de ação penal, de iniciativa do Ministério público”, provém do verbo denunciar (latim denuntiare), que significa anunciar, “fazer denúncia de; acusar, delatar”.
De Plácido e Silva sustenta uma definição mais abrangente e completa: “diz-se denúncia o ato mediante o qual o representante do Ministério Público formula sua acusação perante o juiz competente a fim de que se inicie a ação penal contra a pessoa a quem se imputa a autoridade de um crime ou contravenção”.
Finalmente, importa registrar o conceito de denúncia formulado por Hidejalma Muccio, que envolve todos aspectos da peça acusatória:
A denúncia constitui o ato processual escrito ou oral do órgão do Ministério Público que, em nome do Estado-Administração, nos crimes de ação penal pública, seja incondicionada, ou condicionada à requisição do Ministro da Justiça, ou à representação do ofendido ou de quem legalmente o represente, desde que presente a condição (representação ou requisição), invoca perante o Estado-Juiz a prestação da tutela jurisdicional, deduzindo-lhe com observância dos requisitos previstos no art. 41 do Código de Processo Penal e demais outros decorrentes do próprio ordenamento jurídico processual penal, a pretensão punitiva, dano início à ação (ao processo) contra o autor da infração penal, objetivando sua responsabilização e a aplicação do Direito Penal objetivo.
Por fim, utilizando-se de analogia ao Direito Civil, José Frederico Marques explica que “a denúncia está para a ação penal pública como a petição inicial para a ação civil. Uma e outra constituem o instrumento formal da apresentação do pedido em juízo para ser dado início à ação
O art. 41 do Código de Processo Penal expõe os requisitos essenciais para a elaboração da denúncia supraconceituada. De acordo com o mencionado artigo, a denúncia deve conter “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.”
Para melhor análise dos requisitos costuma-se dividi-los da seguinte maneira:
- descrição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias;
- qualificação do acusado com dados que possibilitem sua identificação;
- classificação do crime;
- rol das testemunhas; e
- requisitos intrínsecos.
No presente trabalho será analisado apenas o primeiro requisito.

A DESCRIÇÃO DO FATO CRIMINOSO
Conforme assevera Fernando da Costa Tourinho Filho, “o Ministério Público, ao acusar o denunciado, obviamente lhe deve imputar a prática de uma fato criminoso.” Tal fato, segundo o respeitado autor, torna-se a razão do pedido de condenação, ou seja, sua causa petendi.
Impossível admitir a existência de uma peça acusatória sem que haja a causa petendi. Para que exista a ação é preciso que se deduza uma pretensão e, ao mesmo tempo, que se aponte o seu fundamento, a sua razão de ser.
Nesse diapasão, resta satisfeita a necessidade de se possibilitar o acesso ao acusado, logo de início, o exercício da ampla defesa. “Conhecendo com precisão todos os limites da imputação, poderá o acusado a ela se contrapor o mais amplamente possível, desde, então, a delimitação temática da peça acusatória, em que se irá fixar o conteúdo da questão penal.”
Não se admite a imputação vaga e imprecisa, que constitua obstáculo ao exercício da defesa. O MP deve incluir na exordial todas as circunstâncias que permeiam o fato, sejam elas elementares ou acidentais, que possam, de alguma maneira, influir na apreciação do crime.
Portanto, indispensável que na denúncia esteja descrito, ainda que sucintamente, o fato delituoso atribuído ao acusado, conforme leciona Julio Fabbrini Mirabete. Ressalta ainda o respeitado autor que “não pode ser recebida a inicial acusatória que contenha uma descrição vaga ou imprecisa, de tal forma lacônica que torne extremamente difícil ou até impossível ao denunciado entender de qual fato esta sendo acusado”.
Quanto as circunstância do fato criminoso, Hélio Bastos Tornaghi ensina importante lição com relação as indagações que devem ser feitas para o seu esclarecimento:
As circunstancias estão admiravelmente reunidas no verbo latino: Quis? Quid? Ubi? Quibus Auxiliis? Cur? Quomodo? Quando?
A primeira Quis, “quem”, refere-se à pessoa do agente, seus antecedentes e personalidade. A segunda Quid, “que coisa”, diz respeito aos acidentes do evento (lato sensu), do acontecimento histórico. A terceira relaciona-se ao lugar, Ubi, “onde”. Quibus auxiliis, a quarta, relaciona-se aos partícipes e aos instrumentos. A quinta, Cur, “por quê”, alude à razão do crime. Quomodo, “de que maneira”, a sexta, reporta-se a forma de execução e, finalmente, a última, Quando, “quando”, considera o tempo em que foi cometida a infração.
Tais circunstâncias previstas em qualquer fato criminoso (local do fato e local da consumação, hora, dia, mês, ano, causas e efeitos, pessoa do criminoso, modo de execução etc) são de grande importância para a ação penal, “pois podem influir na classificação do crime, na existência de qualificadoras, agravantes, atenuantes, causas de aumento e diminuição de pena”, além de “envolver problemas de prescrição e competência”.

INÉPCIA FORMAL E MATERIAL POR AUSÊNCIA DE DESCRIÇÃO DO FATO

Segundo o autor Andrey Borges de Mendonça, a correta e certeira elaboração da tese acusatória é relevante, pois possibilita ao acusado conhecer o fato criminoso que lhe esta sendo imputado, permitindo, assim, o exercício da sua defesa com maior plenitude. Por este motivo deve a denúncia preencher tanto os requisitos extrínsecos presentes no artigo 41 do Código de Processo Penal, como os intrínsecos, anteriormente já analisados. Nesse sentido, a denúncia será inepta quando não preencher os requisitos formais mínimos para o seu processamento.
Em respeito ao principio da ampla defesa, caberia a rejeição da denúncia por inépcia, na medida exata em que esta não atendesse aos requisitos previstos no citado artigo 41.
Neste entendimento, a correta descrição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias é um dos principais requisitos, sendo inclusive o núcleo da imputação. Segundo Fernando da Costa Tourinho Filho, “o fato criminoso, pois, é a razão do pedido da condenação, a causa petendi”, ou seja, sua causa de pedir.”
Acerca de todos os requisitos para a correta elaboração da denúncia, Fernando da Costa Tourinho Filho assevera a exposição do fato criminoso e a individualização como principais requisitos da inicial acusatória:
Alguns desses requisitos são indispensáveis: a exposição do fato criminoso, a individualização do culpado, a escrita em vernáculo, a assinatura do Promotor de Justiça, o pedido de citação do réu, a indicação do Juiz ou Tribunal a que é dirigida. Outros, com o rol de testemunhas e classificação da infração, não se revestem de tanta importância.
Por fim, nesse mesmo sentido conclui corretamente Andrey Borges de Mendonça que a “inépcia está ligada a não-observância de aspectos formais essenciais da peça acusatória (especialmente a descrição do fato com todas as suas circunstâncias e a qualificação do acusado).”
A recente alteração legislativa, ao conferir à defesa oportunidade para responder à acusação antes de instaurada em definitivo a Ação Penal, assegurou um recebimento de denúncia mais atento aos padrões democráticos.
Nessa ordem de ideias, a melhor doutrina tem admitido que, além das hipóteses de absolvição sumária, elencadas no artigo 397 do Código de Processo Penal, a inovação legislativa prevê ainda a possibilidade de nova rejeição da denúncia em face de questões aduzidas na resposta escrita.
Como leciona o Professor Antônio Scarance Fernandes:
Uma das mais relevantes questões a respeito da reforma do Código de Processo Penal refere-se à dificuldade em se interpretar os dispositivos que prevêem dois momentos para o recebimento da denúncia ou queixa: 1. O primeiro antes da apresentação da resposta do réu; 2. O segundo, após a sua apresentação. O primeiro consta da nova redação dada ao artigo 396, do Código de Processo Penal: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias”. O segundo está no novo artigo 399: “Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado e de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente
Assim, pode haver um inicial recebimento da denúncia ou queixa se não houver sua rejeição liminar. São, assim, duas as possibilidades do juiz: rejeição liminar ou recebimento. Se receber, manda citar o acusado para apresentar sua resposta. O outro recebimento ocorre depois de ser facultada ao acusado a possibilidade de apresentar a sua resposta, na qual poderá alegar tudo que deseja em sua defesa e postular a rejeição da acusação ou a sua absolvição sumária. O juiz pode seguir três caminhos: rejeita a denúncia, absolve sumariamente ou recebe a denúncia ou queixa (...)”
Assim, em razão desta nova possibilidade conferida aos denunciados em Ações Penais, pode-se demonstrar inépcia na própria Resposta, devendo o magistrado apreciar a tese defensiva ainda que não esteja acoplada às hipóteses do Art. 397 do CPP:
“(...), superada a fase do art. 395 do Código de Processo Penal com o recebimento da inicial acusatória, após a apresentação da defesa prévia, o juiz não fica vinculado às hipóteses elencadas no art. 397 do mesmo diploma legal, autorizadoras da absolvição sumária. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal de origem, poderá sim rever sua decisão de recebimento da denúncia e, se for o caso, impedir o prosseguimento da ação penal. Isso porque, a possibilidade de o acusado arguir preliminares por meio da resposta prévia, nos termos do art. 396-A do CPP, por si só, incompatibiliza o acolhimento da tese de preclusão pro judicato, dada a viabilidade de um novo exame de admissibilidade da denúncia. Logo, permite-se ao Magistrado, após o oferecimento da defesa prévia, a revisão da sua decisão de recebimento da exordial, tal como ocorreu na presente hipótese. Essa compreensão está em consonância com a orientação desta Corte Superior de Justiça, que considera cabível a reconsideração da decisão de recebimento da exordial acusatória pelo próprio Juízo processante” (AgRg no REsp 1218030/PR, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 01/04/2014, DJe 10/04/2014).
E ainda:
“1. É possível ao Juiz reconsiderar a decisão de recebimento da denúncia, para rejeitá-la, quando acolhe matéria suscitada na resposta preliminar defensiva relativamente às hipóteses previstas nos incisos do art. 395 do Código de Processo Penal. Precedente” (AgRg no REsp 1291039/ES, 5.ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 02/10/2013; sem grifos no original).
Na mesma linha:
“2. Verificada, após a apresentação das defesas preliminares, a inépcia da exordial acusatória pela ausência da descrição individualizada das condutas de cada denunciado, ao Juiz é lícito reconsiderar o recebimento da denúncia, quer por permissão legal, quer por uma questão de coerência com os anseios do legislador, impulsionadores da reforma do Código Adjetivo Penal, tendentes a um processo célere e fecundo. Inteligência do art. 396-A do Código de Processo Penal.3. Agravo regimental desprovido.(AgRg no AREsp 82.199/AL, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 17/12/2013, DJe 03/02/2014).
“1. O fato de a denúncia já ter sido recebida não impede o Juízo de primeiro grau de, logo após o oferecimento da resposta do acusado, prevista nos arts. 396 e 396-A do Código de Processo Penal, reconsiderar a anterior decisão e rejeitar a peça acusatória, ao constatar a presença de uma das hipóteses elencadas nos incisos do art. 395 do Código de Processo Penal, suscitada pela defesa. 2. As matérias numeradas no art. 395 do Código de Processo Penal dizem respeito a condições da ação e pressupostos processuais, cuja aferição não está sujeita à preclusão (art. 267§ 3º, do CPC, c/c o art.  do CPP).3. Hipótese concreta em que, após o recebimento da denúncia, o Juízo de primeiro grau, ao analisar a resposta preliminar do acusado, reconheceu a ausência de justa causa para a ação penal, em razão da ilicitude da prova que lhe dera suporte...]6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido."(REsp 1.318.180/DF, 6.ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 29/05/2013).
Vimos que o requisito da descrição é indispensável e que, caso não esteja presente, a inépcia pode e e deve ser proclamado mesmo após o recebimento da denúncia.
A exigência do requisito essencial corresponde aos compromissos internacionais assumidos pelo País. Consta da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o denominado “Pacto de São José da Costa Rica”, de 22/01/69, ratificado pelo Brasil em 25/09/92, a exigência de (...) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formalizada. Também o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, que vigora entre nós por força do Decreto n. 592/62, consagra, como garantia da pessoa acusada, a de ser (...) informada, sem demora, em uma língua que compreenda e de forma minuciosa, da natureza e dos motivos da acusação contra ela formulada.
Contudo, seria igualmente necessária a descrição do fato de forma individualizada em crimes societários, ocasião em que o crime foi cometido no âmbito empresarial?

CRIMES SOCIETÁRIOS - RESPONSABILIDADE OBJETIVA

Antes de responder tal questão, urge observar que o Direito Penal pátrio não admite a responsabilidade objetiva do indivíduo. A regra do art. 5º, XLV, consagra, indiretamente, a proibição da responsabilidade objetiva. O raciocínio não é complexo: se a pena não pode ultrapassar a pessoa do condenado e se alguém, para ser condenado, deve ser regularmente processado (nulla poena sine judicio), não se poderia processar alguém que estranho ao fato criminoso, sem relação ou envolvimento com o mesmo. Assim, não só a pena, mas seu pressuposto, a culpabilidade, não podem ser transferidos.
O agente só responderá pelo resultado se a ele tiver dado causa, ao menos na modalidade culposa. Isso é o que podemos extrair do princípio constitucional da personalidade da pena, inscrita no art. 19 do Código Penal, após a reforma introduzida pela Lei n. 7.209/84, que afastou qualquer resquício de possibilidade de o agente ser punido somente pelo resultado da ação.
Conforme já mencionado, a formulação adequada da acusação é garantia essencial à defesa, pois informa ao acusado, com precisão, os fatos em que se baseia, pois ninguém pode defender-se quando não há ciência da imputação que lhe é feita.
A acusação genérica, em que não se precise e não descreva, em relação a cada um dos acusados/sócios os fatos considerados delituosos, fere diretamente as garantias constitucionais da ampla defesa, contraditório e devido processo legal.
E é justamente uma das garantias do cidadão frente ao Poder do Estado é o dever de ser processado dentro do devido processo legal, atendendo-se às garantias da ampla defesa.
Não é à toa que o col. Supremo Tribunal Federal não se cansa de repetir, reproduzindo a lição do eminente Min. Soares Muñoz:
"O acusado defende-se da imputação concretizada em fatos, tais como são narrados na denúncia. Cerceada é a defesa, se a acusação é vaga e imprecisa. Daí salientar, com acerto, Borges da Rosa:«a denúncia é uma exposição narrativa e demonstrativa. É narrativa, porque deve revelar o fato com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o mal que produziu (quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira por que o praticou (quomodo), o lugar onde o praticou (ubi), e o tempo (quando). É demonstrativa, porque deve dar as razões de convicção ou presunção da criminalidade do fato praticado e fazer a indicação das provas» (Comentários ao Código de Processo Penal, págs. 128/29, 3ª edição atualizada por Angelito A. Aiquel)". RTJ 110/110; obs.: ementa na p. 107).
Nessa toada, em precedente ainda mais recente, a colenda segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em acórdão da lavra do Min. Celso de Mello, deixou assentado que “a pessoa sob investigação penal tem o direito de não ser acusada com base em denúncia inepta”, direito este “que decorre da “obrigação de o Ministério Público formular denúncia juridicamente apta” (HC n.º 84.436, 2ª T., DJ 28/03/2008; grifos originais).
É que, continua o eminente decano, a denúncia, “antes de mais nada, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal, define a própria ‘res in judicio deducta’” (HC n.º 84.436, 2ª T., DJ 28/03/2008; grifos originais).
Diante destes ensinamentos, o que se verifica é que a inicial acusatória ofertada sem a descrição da conduta de cada denunciado carece dos elementos necessários à sua aptidão.
Não basta imputar de maneira abstrata a prática de crimes, é necessário indicar de forma concreta, o nexo causal ou o liame existente entre estes e o suposto crime cometido, apontando qual ação ou omissão contribuiu para o delito.
Diante do exposto, correto é o repúdio reiterado da jurisprudência à denúncias que se limitam a copiar o nome dos sócios - sobretudo em empresas de grande porte - sem que ao menos se demonstre a vinculação dos agentes com o ilícito apontado.
De fato, tanto o e. STJ como o col. STF, em inúmeras oportunidades, já decidiram que não pode o órgão acusatório desincumbir-se de estabelecer “o vínculo de cada um ao ilícito” (STF, HC n.º 73.324/7, apud: JSTJ e TRFs, ed. Lex 108/581), pois permitir o contrário seria dar azo a denúncias manifestamente infundadas e, mais grave, violadoras dos princípios da ampla defesa e da responsabilidade pessoal.
Ora, se é sabido e aceito sem a mais diminuta discrepância que a “responsabilidade penal não é objetiva e em razão disso, o simples fato de constar o nome do réu no contrato social, por si só, não é suficiente para ensejar a persecução criminal” (STJ, 5ª T., RHC n.º 9.396-MG, v. U., rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 15/5/2000). É, portanto, imprescindível que a denúncia indique de forma objetiva qual a conduta dos denunciados na prática criminosa, ainda que admita-se uma descrição mais sucinta do fato.
O singelo fato de os requerentes serem sócios da empresa, não é suficiente para colocá-los na condição de réus. Aliás, sobre o tema, lição eloquente da 2ª Turma do col. Supremo Tribunal Federal:
“O sistema jurídico vigente no Brasil – tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático – impõe, ao Ministério Público, notadamente no denominado “reato societário”, a obrigação de expor, na denúncia, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a participação de cada acusado na suposta prática delituosa. – O ordenamento positivo brasileiro – cujos fundamentos repousam, dentre outros expressivos vetores condicionantes da atividade de persecução estatal, no postulado essencial do direito penal da culpa e no princípio constitucional do “due processo of Law” (com todos os consectários que dele resultam) – repudia as imputações criminais genéricas e não tolera, porque ineptas, as acusações que não individualizam nem especificam de maneira concreta, a conduta penal atribuída ao denunciado. Precedentes. A pessoa sob investigação penal tem o direito de não ser acusada com base em denúncia inepta. – A denúncia deve conter a exposição do fato delituoso, descrito em toda a sua essência e narrado com todas as suas circunstâncias fundamentais. Essa narração, ainda que sucinta, impõe-se, ao acusador, como exigência derivada do postulado constitucional que assegura, ao réu, o exercício, em plenitude, do direito de defesa. Denúncia que deixa de estabelecer a necessária vinculação da conduta individual de cada agente aos eventos delituosos qualifica-se como denúncia inepta. Precedentes. Crime de descaminho – peça acusatória que não descreve, quanto ao paciente, sócio-administrador de sociedade empresária, qualquer conduta específica que o vincule, concretamente, aos eventos delituosos – inépcia da denúncia – A mera invocação da condição de sócio ou de administrador de sociedade empresária, sem a correspondente e objetiva descrição de determinado comportamento típico que o vincule, concretamente, à prática criminosa, não constitui fator suficiente apto a legitimar a formulação de acusação estatal ou a autorizar a prolação de decreto judicial condenatório – A circunstância objetiva de alguém ser meramente sócio ou de exercer cargo de direção ou de administração em sociedade empresária não se revela suficiente, só por si, para autorizar qualquer presunção de culpa (inexistente em nosso sistema jurídico-penal) e, menos ainda, para justificar, como efeito derivado dessa particular qualificação formal, a correspondente persecução criminal. – Não existe, no ordenamento positivo brasileiro, ainda que se trate de práticas configuradoras de macrodelinquência ou caracterizadoras de delinquência econômica, a possibilidade constitucional de incidência da responsabilidade penal objetiva. Prevalece, sempre, em sede criminal, como princípio dominante do sistema normativo, o dogma da responsabilidade com culpa (“nullum crimen sine culpa”), absolutamente incompatível com a velha concepção medieval do “versari in re illicita”, banida do domínio do direito penal da culpa. Precedentes. As acusações penais não se presumem provadas: o ônus da prova incumbe, exclusivamente a quem acusa. – Nenhuma acusação penal se presume provada. Não compete, ao réu, demonstrar a sua inocência. Cabe, ao contrário, ao Ministério Público, comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Já não mais prevalece, em nosso sistema de direito positivo, a regra, que, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), criou, para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes autoritários, a obrigação de o acusado provar a sua própria inocência (Decreto-lei n.º 88, de 20/12/37, art. 20, n. 5). Precedentes – Para o acusado exercer, em plenitude, a garantia do contraditório, torna-se indispensável que o órgão da acusação descreva, de modo preciso, os elementos estruturais (“essentialia delicti”) que compões o tipo penal, sob pena de se devolver, ilegitimamente ao réu, o ônus (que sobre ele não incide) de provar que é inocente. – Em matéria de responsabilidade penal, não se registra, no modelo constitucional brasileiro, qualquer possibilidade de o Judiciário, por simples presunção ou com fundamento em meras suspeitas, reconhecer a culpa do réu. Os princípios democráticos que informam o sistema jurídico nacional repelem qualquer ato estatal que transgrida o dogma de que não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita” (STJ, Rel. Min. Celso de Mello, HC n.º 88.875/AM, DJ 12/03/2012).
Assim, não pode o órgão acusador contentar-se meramente com os atos formais societários, sem qualquer preocupação com a ação do autor chamado à ação penal ou vínculo do denunciado par a consumação ou tentativa do crime. Admitir isso seria ignorar a supremacia da responsabilidade penal subjetiva em nosso ordenamento e legitimar presunções e deduções para ensejar a instauração de uma ação penal.
Nesse cenário torna-se imperioso, obrigatório e indispensável que o Ministério Público indique uma conduta que demonstre de forma concreta que o denunciado tenha ao menos conhecimento dos fatos supostamente delituosos. A condição de sócio nada pode comprovar, ser sócio de uma empresa jamais foi e será crime.
Sobre este tema, o col. STJ sufragou entendimento segundo o qual “A mera alusão ao fato de ser o paciente sócio da empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a condição de cotista, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva. Deve ser declarada a inépcia da denúncia e determinada a anulação da ação penal” (HC nº 143.508, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 22.11.2010).
No mesmo sentido:
“PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. PECULATO. DESVIO DE VERBAS PÚBLICAS. AUSÊNCIA DE IMPUTAÇÃO FÁTICA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CABIMENTO.1. Não se pode ter por presumida a participação da acusada na gestão dos desvios de dinheiro público, tendo-se indevida pretensão de responsabilidade objetiva, pela tão só nominação como sócia da firmacuja gestão se tem sérias dúvidas sobre por quem era exercida. 2. Ausente a necessária imputação à paciente de condutas de tráfico, cabível o trancamento da ação penal, por falta de justa causa.” (TRF 4ª Região, HC nº 2008.04.00.023470-8Rel. Min. Marcos Roberto Araujo dos Santos, DJ 6.8.2008, destaques nossos).
E mais:
“PROCESSO PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. OMISSÃO. SUPRESSÃO. JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE INDÍCIOS DE AUTORIA. AÇÃO PENAL TRANCADA. 1. A contradição capaz de ensejar a oposição de embargos declaratórios deve ser interna ao acórdão, verificada entre a fundamentação do julgado e a sua conclusão 2. Não examinada no acórdão embargado a suposta responsabilização objetiva dos pacientes alegada no writ, há omissão no julgado que merece ser sanada. 3. A simples condição de sócio ou ocupante de relevante cargo em empresa de porte substancial não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da pessoa jurídica, exigindo-se ao menos indiciária prova da consciente participação dos acusados nos fatos imputados. 4. Ausência prova indiciária acerca da autoria dos fatos em relação aos pacientes, deve ser trancada, nesse limite, a ação penal, por falta de justa causa. (TRF 4ª Região, EmDcl em HC nº 2009.04.00.020855-6, Rel. Des. Néfi Cordeiro, DJ 8.10.2009, destaques nossos).
Assim, caso a denúncia não descreva a conduta do sócio, torna-se indiscutível a inépcia formal e material da inicial acusatória, que pode e deve ser reconhecida após análise dos argumentos expostos na Resposta à Acusação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 15 ed. Revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008
FERNANDES, Antônio Scarance; Lopes, Mariângela. “O recebimento da denúncia no novo procedimento” – Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p 2-3, set. 2008).
MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2ª tiragem. Campinas: Millennium, 2003. V. 2.
MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do código de processo penal: comentada artigo por artigo. São Paulo, Método, 2008.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de processo penal interpretado. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MUCCIO, Hidejalma. Da denúncia: teoria e prática. 1 ed. Bauru: Edipro, 2001.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 9 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 22 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penalcomentado. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. V.1.
TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de Processo Penal, 6ª ed., vol. 1, p. 43

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